segunda-feira, 17 de outubro de 2016

SABEIS VÓS A QUANTIDADE DE ENERGIA NECESSÁRIA PARA SUSTENTAR UMA MENTIRA?

Sabeis vós a quantidade de energia necessária para sustentar uma mentira?
Aquela em que nos induzimos a acreditar. Que racionalmente faz mais sentido para nós? Que se enquadra no nosso sistema de crenças, na forma como nos foi dito que a vida deveria ser vivida. E nós acreditámos.

E mesmo que todas as células do nosso corpo e a nossa energia inata se rebelem contra a crença, contra a mentira, contra a racionalidade daquilo, continuamos a sustentá-la. A crescer-lhe mais um pilar ou a reforçar-lhe a estrutura. Para que fique mais forte. Para que a sua estrutura nos convença da sua veracidade.

Aplicamos-lhe uma camada de verniz. Uma operação estética que serve para induzir os outros à certeza da nossa crença. Porque se eles (essa massa anónima que nos é externa e nos habita a vida) acreditarem, há um fundamento maior para a minha mentira. Ela passa a ser validada externamente. E aceite.

E se for aceite eu estou enquadrada. E se eu estou enquadrada, o mundo faz sentido. Está tudo bem. Há um nível de segurança que foi garantido. Uma aceitação que foi cumprida. E portanto, embora haja algo de intrínseco em mim que negue a veracidade do que afirmo, embora o músculo miocárdio se contraia à dor de cada vez que o afirmo, revisto-me de uma segunda camada estética, desta feita de voluntarismo convicto do que digo. Enterro firmes os pés no solo que escolhi para fundamentar raízes e permito que estas se contorçam, se desfigurem, se retorçam, conquanto seja abaixo do que é visível aos outros.

Enquanto isso canalizo energias às raízes. Não porque a sua cristalização as exija, mas porque o meu medo da sua fragilidade o determine. É necessário manter íntegra a estrutura por mim criada. Sólida, nutrida, vigorosa. Para que não subsistam dúvidas da certeza que a criou.
E nesta sustentação criei as sanguessugas da minha vida. Existo apenas para as alimentar.

domingo, 2 de outubro de 2016

Olhares

A primeira vez que o vi, sentou-se à minha frente. A mesa extensa de tamanho e de vozes era obliterada pela imensidão do seu sorriso. Não o conhecia, e, ainda assim, aquele mundo que se abria quando sorria, exercia sobre mim o mesmo fascínio inevitável que a luz sobre as mariposas.
Havia algo de insuportavelmente doce nele. Sobrou-me o enjoo e divergi a atenção.
As conversas continuaram e cruzaram-se. Acima delas ouviam-se os talheres que tamborilavam as travessas, cuja irrequietude as fazia fazer viagens acima e a sul da mesa. De vez quando caíam. Encolhiam-se os comensais e recolhiam os copos. Tudo se pode transformar, menos o líquido derramado. Inutilizado em manchas de sangue crescente.
O avançar do relógio provocava convulsões entre as cadeiras. Pigarreavam os que se levantavam e emitiam todos as mesmas justificações «são as horas...». Ele permaneceu sentado. Eu também.
E foi num desses momentos de paragem dos ponteiros que me apaixonei. Quando um comentário a algo que me escapou já da memória, lhe relampejou o olhar.
Nunca precisei de o ouvir dizer que as minhas palavras compreendiam em si um espírito de contradição ou segunda leitura. Acende-lhe aquele relâmpago e antes que termine a sua articulação já sei que necessitam de clarificação.
A seguir ri. Um som que o escala e sai espontâneo através das cordas vocais.
Esqueci o doce. Fica-me sempre a impressão áspera daquele veneno que o espigão de relâmpago incorpora.