terça-feira, 25 de agosto de 2015

Às vezes a alma fica muda e perde calor

Naquela noite ele disse-lhe «amo-te». Agarrou-lhe o braço firmemente, enfatizando a certeza anterior e repetiu: «amo-te». Naquele dia ela tinha libertado as fúrias e não lhe prestou atenção. Ouviu...mas não escutou.
São seres curiosos, as fúrias. Nascem-lhe do centro em tormentas coloridas, envolvendo-se numa profusão misturada de cores, mas sem nunca perderem a identidade individual. Mesclam-se o medo, a  dor, a vergonha, a decepção, as necessidades: de aceitação, de afirmação, de centro, de abraços.
Naquele dia tinham-se libertado todas. Rugiam adentro, extravasavam-se na ausência do sentido discursivo, na imperiosa necessidade de lhes afirmar um centro, de as controlar, de lhes impor limites. Rebelou-se ao verbo, ao tempo em que foi proferido, à confusão que a invadia e não lhe prestou atenção.
Deitou-se ainda convulsa. Tremia inteira e enroscou-se questionando-se incessantemente «porquê?». Porquê hoje? Porquê agora? No entanto, não tinha consciência do verbo. A tormenta chegava-lhe do excesso. Não descansou. Abandonada à sua sorte a mente espiralava pensamentos num rodopio estonteante. Assistiu ao passar das horas, ao nascer do sol e quando desistiu finalmente do descanso necessitado, decidiu-se dissolver as espirais nas águas não menos convulsas de um mar aparentemente mais calmo do que ela.
Cria que a luz do dia as fizesse recuar às muralhas que normalmente as guardam. Distraiu-se com o mundano corriqueiro de um dia de verão. Concentrou-se nos passos alheios e respirou. Acalmou.
Teve pela primeira vez a consciência de que a atenção lhe havia falhado em algum grau, mas não o descortinava.
Chegou-lhe a necessidade do conforto por voz alheia. Colocou a panela no fogo, desmembrou as partes ainda inteiras de uma galinha já cortada e observou o processo de cozedura da mesma. Desfiou-lhe as carnes, juntou-lhe as letras, no final as ramas grossas da hortelã e sentou-se. Inspirou os aromas e permaneceu em quietude durante a eternidade de uns instantes breves. Sorriu perante a lembrança dos ensinamentos da avó - «às vezes, filha, a alma gela-se-nos. Quando não lhe atendemos a voz ela fica muda e perde calor. Nesses dias é preciso aquecê-la, senão o frio toma-nos conta do coração e ficamos doentes. Come a canja, filha, aquece o coração e a alma». Respeitou o ensinamento e comeu.
Ao mesmo tempo que a alma recuperava o calor da voz, alentou-a com palavras outras, de uma alma irmã, para lhe restaurar a faculdade e lhe devolver a fala.
Foi quando lhe ouviu os passos. Sentiu-o entrar antes de o ver. E ouviu-o então distintamente «amo-te».

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Luminescência percepcionada

Ontem ofereceram-me um floco de neve. Há anos que não me cruzava com aquele embrulho vermelho e sorri. O rebuçado, per si, nunca me interessou grandemente, mas o papel que o envolvia sempre representou todo um mundo novo. Recriado a vermelho.
Outros papéis existiram assim na minha vida, uns rosas, outros amarelos, verdes e azuis... Laranjas só me lembro de um.
Ocorreu-me que gostamos de criar. Enquanto criança criava todo um mundo novo a partir daquele embrulho vermelho. Podia viver em Marte ou nas tribos índias do Faroeste. Quando crescemos, não deixa de ser curioso que esbatemos as diferenças entre a realidade e a ficção, e aquilo que observamos através destes auxiliares de visão torna-se uma verdade inequívoca.
É certo que as cores dos papéis se transformaram, em vez de transparências de arco-íris abrimos a panóplia de escolhas a emoções e reacções. E toda a nossa existência passa a ser criada através da roda de Plutchik.
Bradam-se as fúrias aos céus, em como somos os únicos seres no planeta (bolas, se a tempestade estiver atingido o seu auge, do Universo!) a quem qualquer acontecimento inesperado e não desejado acontece! 
Acaricia-se a consciência da inacção individual, extravasando a frustração do seu reconhecimento (mas não integração) na inacção percepcionada do outro. 
Responsabiliza-se outro (ser ou objecto) pela nossa felicidade. É extraordinário quanta felicidade se projecta no «quando estiver com ou possuir este/aquilo serei feliz».
A minha perspectiva de observação preferida concentra-se, ainda, na presunção do conhecimento da resposta. Entra-se no modo ficcional e somos tão extraordinários na criação dos enredos vivenciais. Não disse, não vou, não faço, estou triste, frustrado, irado, decepcionado porque a reacção do outro não corresponde aquilo que ficcionámos internamente. Tinha que ter dito, feito, olhado, estremecido, reagido, esboçado outra coisa qualquer.
Ocorre-me que neste vivenciar das experiências coloridas do papel, não me recordo do sabor do rebuçado...

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Pústulas relacionais

Um dia caí. Quer dizer, devo ter caído umas quantas vezes antes, mas lembro-me especialmente daquela queda. Ia a correr e tropecei. Caí em chão de terra batida, polvilhado de uns seixos pequenos e suaves nas mãos, mas que sofriam certamente de algum tipo de preconceito quanto aos joelhos, uma vez que estreitaram com os meus uma relação bem menos ternurenta.
Lembro de olhar com curiosidade a pele macerada e o sangue que escorria. Nada de grave, mas curioso. Como é que algo tão frágil como a pele guardava algo tão precioso como o sangue? O que é que se escondia para além dela? Poderia chegar a ver os ossos? Eram eles assim tão brancos?
No meio desta fascinada observação até me esqueci que me ardiam os joelhos.
Como criança que era, com o espírito borboleta que ainda hoje me caracteriza, andei por ali a investigar as feridas mais uns instantes, observando o aumento do fluxo de sangue quando apertada a pele de determinada forma e como estancava quando o fazia de outro modo. Depois esqueci. Outro algo prendeu-me a atenção e eis que me levantei e comecei a correr novamente.
Dias mais tarde dediquei-me a observar as bostelas subjacentes. Estava fascinada com aquele sangue seco que regenerava, com as tentativas de o remover sem abrir as lesões da pele ainda não completamente sarada. E nesta investigação continuava a abrir as feridas e libertar o sangue preso adentro.
Lembrei-me deste episódio num flashback ao falar com outro alguém acerca de relações. Dos amores e desamores, das dores das perdas, das expectativas de resposta, das desilusões porque estas não correspondem ao idealizado e ocorreu-me que nesta matéria somos muito crianças. Corremos atrás de sonhos e idealizações com a fé inabalável de quem não sabe que os castelos de nuvens não se habitam.
Caímos amiúde, obviamente. Tropeçamos no inevitável choque entre o expectado e o objecto real das nossas expectativas, que afinal não sorri na forma, trejeito e timing que nos é mais propício e, lá está, esperado. Que afinal tem vontades, desejos, estados de humor, receios, anseios e, pasme-se!, expectativas. Às quais nós não correspondemos. (porque obviamente nada têm a ver connosco)
E aqueles seixos idealizados, tão suaves ao toque e à imaginação romântica, têm afinal pontas aguçadas ao coração. Rasgam os afectos, pequenas lesões de cada vez. Coisas curiosas, que não nos detemos a investigar. Cresce-nos o medo de que se as observarmos, se lhes mexermos, vão piorar a lesão, aumentar a ferida, até que se torne incurável. Não há vacina do tétano que lhe valha.
E ficam as bostelas. Aquelas que vão sarando, seja pela regeneração dos sonhos, seja pelo esquecimento consciente da sua existência.
Até que num outro dia qualquer, outro seixo (ou o mesmo), promove novos estragos, reabre as feridas que afinal ainda por lá existiam, cria novas cicatrizes.