sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Pústulas relacionais

Um dia caí. Quer dizer, devo ter caído umas quantas vezes antes, mas lembro-me especialmente daquela queda. Ia a correr e tropecei. Caí em chão de terra batida, polvilhado de uns seixos pequenos e suaves nas mãos, mas que sofriam certamente de algum tipo de preconceito quanto aos joelhos, uma vez que estreitaram com os meus uma relação bem menos ternurenta.
Lembro de olhar com curiosidade a pele macerada e o sangue que escorria. Nada de grave, mas curioso. Como é que algo tão frágil como a pele guardava algo tão precioso como o sangue? O que é que se escondia para além dela? Poderia chegar a ver os ossos? Eram eles assim tão brancos?
No meio desta fascinada observação até me esqueci que me ardiam os joelhos.
Como criança que era, com o espírito borboleta que ainda hoje me caracteriza, andei por ali a investigar as feridas mais uns instantes, observando o aumento do fluxo de sangue quando apertada a pele de determinada forma e como estancava quando o fazia de outro modo. Depois esqueci. Outro algo prendeu-me a atenção e eis que me levantei e comecei a correr novamente.
Dias mais tarde dediquei-me a observar as bostelas subjacentes. Estava fascinada com aquele sangue seco que regenerava, com as tentativas de o remover sem abrir as lesões da pele ainda não completamente sarada. E nesta investigação continuava a abrir as feridas e libertar o sangue preso adentro.
Lembrei-me deste episódio num flashback ao falar com outro alguém acerca de relações. Dos amores e desamores, das dores das perdas, das expectativas de resposta, das desilusões porque estas não correspondem ao idealizado e ocorreu-me que nesta matéria somos muito crianças. Corremos atrás de sonhos e idealizações com a fé inabalável de quem não sabe que os castelos de nuvens não se habitam.
Caímos amiúde, obviamente. Tropeçamos no inevitável choque entre o expectado e o objecto real das nossas expectativas, que afinal não sorri na forma, trejeito e timing que nos é mais propício e, lá está, esperado. Que afinal tem vontades, desejos, estados de humor, receios, anseios e, pasme-se!, expectativas. Às quais nós não correspondemos. (porque obviamente nada têm a ver connosco)
E aqueles seixos idealizados, tão suaves ao toque e à imaginação romântica, têm afinal pontas aguçadas ao coração. Rasgam os afectos, pequenas lesões de cada vez. Coisas curiosas, que não nos detemos a investigar. Cresce-nos o medo de que se as observarmos, se lhes mexermos, vão piorar a lesão, aumentar a ferida, até que se torne incurável. Não há vacina do tétano que lhe valha.
E ficam as bostelas. Aquelas que vão sarando, seja pela regeneração dos sonhos, seja pelo esquecimento consciente da sua existência.
Até que num outro dia qualquer, outro seixo (ou o mesmo), promove novos estragos, reabre as feridas que afinal ainda por lá existiam, cria novas cicatrizes.

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