segunda-feira, 20 de abril de 2015

Pode um beijo valer um par de sapatos?

Toda a minha vida ouvi que os melhores presentes são aqueles que não se podem comprar. Não existem nas lojas, não têm o brilho polido pelos catálogos, não surgem embrulhados em papel colorido, mais ou menos artístico.
Amar é o melhor presente. Mas chato. Amar traz acoplado a si o medo. Da dor, da perda, da traição, da morte. É um presente com duas faces. É tão mais gratificante, no imediato, desembrulhar um par de sapatos novos. O número é o certo, o material é confortável, a cor e textura o que se pretende e o ajuste é perfeito!
Claro que o sapato sofre o desgaste da erosão natural. Sentindo-se a necessidade da troca a médio prazo. A cor desbotou pela ação do sol, o brilho perdeu-se entre o escape de um veículo e o cuidado esmorecido que o passar do tempo lhe vai dedicando, o design à muito que passou de moda e novos modelos surgem nas montras para contrastar com esse amor outonal que o sapato em nós desperta. Como a folha é necessário deixá-lo ir. A vantagem é que as ocasiões para renovar os eflúvios apaixonantes que o sapato em nós inicialmente despertou se repetem a espaços fixos e móveis. E novos embrulhos trazem novas palpitações. 
Torna-se um ciclo vicioso. Pode um beijo valer um par de sapatos?
Aos 20 anos para mim não valia. Enquanto o par de sapatos abria um leque de possibilidades, o beijo encerrava a promessa de limites. E assim ficava-me a polaridade e a argumentação interna entre a consciência de que o amor é maior e superior e o prazer hedonista do desembrulho e da surpresa que este encerra.
A vantagem de ter presente um assunto, mesmo em conflito interno, é que as perspectivas vão brotando. Os sapatos foram sendo cada vez menos importantes, sobretudo quando me apercebi que muitas vezes tinha de fazer uma escolha não explícita entre eles e a presença de quem os oferecia. E se o amor vago e retórico tem dificuldade em impor-se perante um embrulho brilhante, este perde todo o seu brilho perante um espaço vazio de ausência.
À ausência foram-se somando outras perspectivas, amiúde impostas pela distância. Não há prazer que se compare aos braços dos que amamos, aos sorrisos que partilhamos em torno das histórias que já vivemos ou das memórias que estamos a construir. 
A consciência evolui e subitamente apercebo-me que há mais para além dessa partilha. O outro. E que os melhores presentes que tenho recebido nestes últimos meses se embrulham em palavras que têm agora outra dimensão. A minha é, neste momento, confiança. 
Um beijo pode não valer um par de sapatos, mas ser depositário da confiança de alguém vale. 

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